30 de abril de 2023 0 Por lideranca

Imagine estar andando pelas ruas, cometer um erro fútil e ser baleado por isso. Ou mesmo estar dentro de sua casa, deixar algum pertence cair no vizinho e ser ferido a tiros. Pois é, essa tem sido a nova realidade nos Estados Unidos. Além dos comuns massacres que a violência armada proporciona, agora ela também está cada vez mais presente no cotidiano e a população tem sido ferida por motivos fúteis. No começo de abril, um adolescente de 16 anos confundiu a casa quando foi buscar seus irmãos, e, ao tocar campainha no lugar errado, levou um tiro na cabeça e em um dos braços. Dias depois, duas líderes de torcidas foram baleadas ao confundirem o carro no estacionamento. Dentro da própria casa, uma criança de seis anos e seus pais foram feridos a tiros após uma bola de basquete cair na casa ao lado. Por fim, um entregador errou o endereço e teve o carro alvejado. Todos esses acontecimentos foram registrados somente no mês de abril, e ele se somam aos demais ataques a tiros ocorridos em território norte-americano. Segundo a Gun Violence Archive, um grupo de pesquisa que cataloga todos os incidentes de violência armada nos EUA, até o dia 24 de abril, mais de 13 mil americanos foram feridos a tiros. Esse é um cenário que mostra como o fácil acesso às armas está fora de controle e coloca a população cada vez mais em risco.

Em entrevista, Philip J. Cook, professor Emérito de Políticas Públicas e Economia da Duke University, explica que as vendas de armas aumentaram desde 2020, ano em que a pandemia de Covid-19 estourou e também quando houve as manifestações generalizadas contra a polícia como resultado do assassinato de George Floyd. Ele pontua que muitos norte-americanos acreditam que suas armas os deixam mais seguros e são rápidos em usá-las quando se sentem ameaçados, uma crença que, segundo ele, se mostra errada. “As vendas de novas armas aumentaram, com muitas famílias comprando pela primeira vez. Enquanto isso, os departamentos de polícia estão tendo problemas para recrutar e manter oficiais suficientes. Assim, com mais armas e menos policiamento, a crise da violência armada continua”, fala o especialista. “Não há como a venda e posse de armas ser restringida nos Estados Unidos, já que a Suprema Corte decidiu que os americanos têm o direito pessoal de ter armas e carregá-las em público. A maioria das pessoas acredita que está mais segura se tiver uma arma. Na maioria das vezes, essa crença se mostra errada e o resultado é uma tragédia”, acrescenta.

Um relatório recente do jornal ‘USA Today’ mostrou que uma média de 110 norte-americanos morrem diariamente por causa da violência armada, um número bem acima das taxas de armas de fogo em qualquer outra nação. “Embora hoje a maioria da população dos Estados Unidos, 63% segundo recente pesquisa da Pew Research, quer um controle mais forte e efetivo no acesso às armas, ainda encontra grande obstáculos nos políticos conservadores e nas poderosas associações de armas que acreditam no direito irrestrito do cidadão americano de ter uma ou várias armas em seu poder”, fala a advogada, cientista política e autora do Projeto Falando de Política Michelle Meneses. Ela complementa que os norte-americanos estão “pagando um preço alto demais pelo fácil acesso às armas” e que o melhor caminho seria uma “conscientização e valorização da vida humana e dos perigos de uma população civil fortemente armada, principalmente em um momento em que a sociedade está “doente” e sofre com racismo, xenofobia com extremismo exacerbado e o capitalismo selvagem”. Diante deste cenário, o professor Philip J. Cook fala que, hoje, pequenas discussões e conflitos, como acidentes de trânsito sem gravidade, têm uma boa chance de se tornarem mortais. “A violência armada é uma das várias questões que estão polarizando a nação. A eleição de 2024 vai piorar isso”. Donald Trump, defensor das armas, e Joe Biden, que defende uma política mais rígida para posse e porte de armas, já se lançaram como candidatos à presidência nas eleições de 2024.

Apesar dos EUA serem o país que mais registram violência armada, não são o único com esse problema ou qualquer outro que diga respeito a atitudes radicais. A psicóloga Vanessa Gebrim, especialista em Psicologia Clínica pela PUC de São Paulo, afirma que todos nós somos violentos porque sentimos raiva, e esse sentimento, quando é reprimido e não elaborado, vai explodir em surto. “Já pensou ou ouviu: ‘que vontade de dar um tiro no meio da cara dessa pessoa’; ‘fulano merece morrer’; ‘que vontade de matar…’? Então, aí está uma explicação de por que vemos tanta violência por aí”, fala a especialista. “Esse comportamento violento está muito presente em virtude da desestrutura familiar, falta de equilíbrio mental das pessoas, a presença de transtornos nunca diagnosticados e tratados, além da desigualdade social, falta de oportunidades, o convívio com pessoas violentas e o discurso de ódio nas redes sociais são os principais fatores”, acrescenta. Igor Lucena, economista e doutor em Relações Internacionais pela Universidade de Lisboa, fala que por mais que os Estados Unidos sejam uma nação rica, a desigualdade é absurda e a pobreza leva à violência.

“Infelizmente hoje vivemos em uma sociedade de imediatismo, onde as pessoas não medem as consequências dos seus atos. Elas querem direitos demais sem responsabilidade. Quando ela [a sociedade] quer reivindicar seus direitos sem consequência, ela termina em caso de violência”, fala o especialista, que diz não acreditar no conceito de que as pessoas precisam se armar ou desarmar, mas defende a necessidade de um controle maior de armas. “O direito de ter armas não significa direito indiscriminado e descontrolado. Talvez o que precise ser feito é um controle maior de quem pode ou não ter acesso às armas, porque não vamos conseguir desarmar a população”, afirma. Ele acrescenta que mesmo que isso acontecesse, o armamento seria trocado por armas brancas. Para ele, o que tem faltado é a tolerância. “Arma é um instrumento, mas ela não atira sozinha”. O especialista pontua que o que precisa ser feito é, além de um conjunto de lei, “uma conscientização maior da sociedade sobre o uso de armas. Ou seja, pontuar as consequências que se pode ter e ensinar desde criança. Dessa forma, ele acredita que o problema possa ser solucionado não para essa geração, mas para as próximas. A psicóloga Vanessa Gebrim também defende esse ensinamento, e afirma que é necessário investir em mais educação, saúde mental, emprego, segurança pública e só então abordar o desarmamento. Gebrim diz que vivemos um “momento de priorização de liberdades individuais em que o bem-estar coletivo parece estar ficando em segundo lugar”, o que pode explicar os registros de ataques cotidianos por atitudes fúteis.

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